Eclusas de Tucuruí retomam projeto para região

Maior sistema de transposição do mundo para navegação interior, as eclusas de Tucuruí, que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva inaugura hoje, no rio Tocantins, chega com um atraso de três décadas. A obra deveria ter sido inaugurada no dia 22 de novembro de 1984, quando o então presidente João Figueiredo, às vésperas de deixar o cargo, inaugurou a primeira etapa da hidrelétrica. Os dois projetos – o da usina, para geração de energia, e o das eclusas, para manter o rio livre à navegação – deveriam ser tocados simultaneamente. O segundo, porém, não conseguiu alcançar o ritmo do primeiro.

Relegado a plano secundário na fase final do regime militar, o projeto das eclusas receberia um rude golpe logo no primeiro governo civil que viria a seguir. Ao assumir a Presidência da República em março de 1985, ante o impedimento do presidente eleito Tancredo Neves, que morreria menos de um mês depois (em 21 de abril do mesmo ano), o hoje senador José Sarney tomou uma decisão que, na prática, significou o congelamento da obra. A paralisação daí decorrente duraria perto de duas décadas.

PLANO REGIONAL

Até o final da primeira metade da década de 1980, um programa de desenvolvimento estratégico elaborado pelo governo federal e na época coordenado pelo Conselho de Ministros do Programa Grande Carajás – pioneiramente dirigido pelo paraense Oziel Carneiro –, servia de base para o planejamento econômico de todos os Estados das regiões Norte e Centro-Oeste. Também os empresários das duas regiões condicionavam seus investimentos à execução do Projeto de Desenvolvimento Integrado da Bacia do Araguaia-Tocantins (Prodiat), um estudo que contemplava desde o aproveitamento das riquezas minerais de Carajás até o escoamento da produção agrícola de Mato Grosso, Goiás e Tocantins.

O Prodiat previa, em sua concepção, a construção da hidrelétrica de Tucuruí e de uma série de usinas com sistemas de transposição ao longo dos rios Tocantins e Araguaia, fazendo de ambos um eixo hidroviário com extensão de aproximadamente dois mil quilômetros. De tudo o que foi pensado, apenas a hidrelétrica de Tucuruí saiu do papel de acordo com o cronograma. O sistema de transposição da barragem, condição primeira para viabilizar a hidrovia, está saindo somente hoje, com trinta anos de atraso.

O que causou esse descompasso foi a decisão, tomada na época pela Presidência da República, de alterar a matriz prevista de transporte para a integração das Regiões Norte e Centro-Oeste. Pelo Prodiat, um programa gestado por uma qualificada equipe interministerial, a integração entre as duas regiões se daria através do transporte hidroviário. A navegação na bacia do Tocantins e de seu principal afluente deveria complementar, talvez com vantagem, o mesmo papel que já desempenhava na época a rodovia Belém-Brasília, otimizando o transporte de cargas e servindo de estuário às novas frentes de ocupação que avançavam em direção ao sul e sudeste do Pará.

O plano foi abortado, porém, pela decisão do então presidente José Sarney, que decidiu priorizar o transporte ferroviário. Para isso, tirou da prancheta do Ministério dos Transportes – então sob o comando do também maranhense José Reinaldo Tavares –, o projeto da Ferrovia Norte Sul. Ela teria um traçado de certo modo paralelo ao da hidrovia do Tocantins Araguaia, mas só até certo ponto. A diferença, decisiva, estava em seu tronco final ao norte.

Enquanto a hidrovia do Tocantins tendia a fazer do Pará, através do Porto de Vila do Conde ou de um eventual terminal marítimo, o corredor de exportações da Região Norte, a opção ferroviária, já na época facilitada pela construção da Ferrovia de Carajás, fazia uma inflexão à direita para dar em definitivo essa credencial a São Luís do Maranhão.

A opção pelo modal ferroviário tornou perfeitamente dispensável, na época, não somente a construção das eclusas. Ela congelou por décadas – senão em definitivo – o plano da hidrovia e, de quebra, esfriou também as discussões sobre a construção do porto do Espadarte, em Curuçá. Este, um tema extremamente sensível para os paraenses, na época ainda em boa parte inconformados com a decisão que levou para o Maranhão o escoamento do minério produzido em Carajás.

Derrocamento do Tocantins deve começa em março

O Ministério dos Transportes trabalha com a perspectiva de dar início, já em março do ano que vem, aos serviços preliminares do projeto de derrocamento do rio Tocantins, com a mobilização de máquinas e implantação do canteiro de obras. O projeto vai garantir a navegabilidade plena do Tocantins num trecho de mais de 500 km entre Marabá e Vila do Conde, passando pela hidrelétrica de Tucuruí. Na usina será inaugurado hoje o sistema de transposição para travessia da barragem, neutralizando um desnível de 74 metros.

De acordo com o coordenador de manutenção e operação de hidrovias do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), o paraense Flávio Acatauassu, pelo menos cinco grandes consórcios, constituídos de gigantes da construção civil como Mendes Júnior, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez, se apresentaram à disputa da licitação, no edital cuja abertura ocorreu em Brasília no dia 16 deste mês.

Atualmente, conforme frisou, o processo está na fase de habilitação dos documentos. A expectativa é de que, já na semana que vem, venham a ser abertos os envelopes de habilitação técnica e de preços. Cumprido esse cronograma, Flávio Acatauassu disse acreditar que será possível ter os contratos prontos para assinatura na primeira semana de janeiro. O início das obras, porém, vai ter que esperar um pouco mais porque nesse período estará em vigor o defeso da pesca, em cujas restrições se incluem também as obras de engenharia.

Orçado em R$ 520 milhões, o projeto prevê o derrocamento de pedrais num trecho de 43 quilômetros que hoje tornam arriscada – ou mesmo impraticável – a navegação comercial no rio Tocantins em determinados meses do ano. Nesse trecho, entre as cidades de Marabá e Tucuruí, serão feitos serviços de dragagem, para eliminação dos bancos de areia que afloram durante o verão em pontos diversos do rio, e também a instalação de boias de sinalização náutica. O projeto tem prazo previsto de dois anos para execução.

Mesmo reconhecendo a existência de limitações, Flávio Acatauassu considera que a inauguração das eclusas de Tucuruí já traz um avanço significativo à navegação do rio Tocantins. Ele observa que, apesar dos obstáculos existentes hoje, como formações rochosas e bancos de areia, a navegação no rio Tocantins a partir de Marabá é praticada sem problemas em oito a nove meses do ano, dependendo do regime de chuvas. Mesmo nos meses de setembro a novembro, que costumam ser os mais secos do ano, ele diz que é possível a navegação, apenas com o encurtamento dos comboios e o consequente alívio das cargas.

Maior evento estruturante vivenciado pela Amazônia

Para o engenheiro e consultor Kleber Menezes, uma das maiores autoridades do Brasil em logística, navegação e infraestrutura portuária, a inauguração das eclusas de Tucuruí representa o maior evento estruturante já vivenciado até hoje pela Amazônia. “Essa obra é um marco determinante da inclusão regional na matriz logística nacional, iniciada pela construção da rodovia Belém/Brasília”, afirma Kleber Menezes, lembrando, a propósito, que a interligação rodoviária do Pará com o restante do país completou meio século em abril passado.

Kleber Menezes cita um fato que serve como registro histórico e, ao mesmo tempo, como homenagem póstuma ao ex-presidente da Fiepa, Danilo Remor, que faleceu no exercício do cargo, em 2005. Convidado a falar sobre a hidrovia do Tocantins logo no início do primeiro governo Lula, em encontro realizado na Fiepa, lembra Kleber Menezes que ele passou a discorrer sobre as dificuldades que se antepunham ao eixo hidroviário, representados pelos pedrais do Lourenço, em Itupiranga, pelos de Marabá e pelos bancos de areia, entre outros embaraços à navegação.

Foi aí que Danilo Remor, um entusiasta da hidrovia e defensor ardoroso das eclusas, fez uma observação que hoje, reconhece Kleber Menezes, traduzia toda sua sabedoria e objetividade. “Olha, Kleber, todos nós sabemos que ainda falta muita coisa, mas, se agora tentarmos colocar todos os problemas de uma vez, não sairá nada. E aí, uma vez mais, ficaremos isolados da logística brasileira”.

Hoje, o consultor diz que segue também esta linha de pensamento. Mesmo reconhecendo que ainda falta muito para que se venha a ter a navegabilidade plena da hidrovia, é inegável, segundo ele, que o agronegócio, por exemplo, será extremamente beneficiado, como será também a indústria de transformação do setor mineral. No caso do agronegócio, lembrou que a safra coincide com o período de cheia do rio, quando ficam submersos os bancos de areia e também as pedras.

Em relação à indústria mineral, destaca Kleber Menezes que o setor já utiliza precariamente a hidrovia. Com a construção das eclusas, ele passará a dispor de um corredor hidroviário superior a 500 km de extensão, com navegabilidade plena em oito meses, restrita em dois e somente com impedimento em outros dois meses, em outubro e novembro. “Os avanços são, portanto, significativos. Não podemos esperar que o rio Tocantins se transforme, como em passe de mágica, num grande corredor de transporte. Isso demanda tempo, mas o importante é que estamos avançando e os investimentos estão a caminho”, finalizou. (Diário do Pará)

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