Material Destinado às provas do ENEM e demais Vestibulares


A Morte no Brasil Colônia
por VIVIANE GALVÃO*

O complexo ritual funerário instituído pela Igreja colonial em pouco se assemelha aos rituais praticados nos dias de hoje. O imaginário da sociedade colonial, em sua essência católica, era povoado por imagens referentes à morte. A doutrina católica da morte, fundamentada na tríade Céu, Purgatório e Inferno, regulamentava o modo de viver e morrer de seus fiéis. Evitar os pecados não era tarefa fácil; procurava-se compensar uma vida desregrada através das "estratégias de salvação".
A primeira destas estratégias era o testamento. Nele a pessoa tinha oportunidade de reparar erros, reconciliar-se com os inimigos, praticar caridade e, principalmente, definir os detalhes de seu sepultamento.
Nos velórios coloniais predominavam inúmeras crenças populares. O corpo era exposto arrumado em cima de um estrado alto chamado de "tarimba" ou "essa", estando seus pés voltados para a rua. Quem chegava cumprimentava o defunto, saudando-o com água benta e tomando cuidado para não pronunciar o nome do falecido, pois poderia evocar sua alma, prendendo-a aqui. Estes velórios eram alegres e animados, contando com comidas e bebidas e, muitas vezes, com música.
Os cortejos fúnebres contavam com a presença dos membros das irmandades leigas, parentes, amigos, curiosos, músicos e padres. Os mais pomposos eram realizados à noite, com a participação de dezenas - ou até mesmo centenas - de pobres, pagos para acompanhar o morto e assistir à missa de corpo presente. A contratação destes pobres, além de aumentar o luxo do cortejo fúnebre, funcionava como "estratégia de salvação", pois a alma do defunto beneficiava-se do ato de caridade e de suas orações. Por serem considerados especialistas em salvação, acreditava-se que quanto maior o número de padres presentes no enterro, maiores seriam as possibilidades da alma do morto ser salva. Na Bahia foi registrado um funeral acompanhado por cem padres, além do pároco e do sacristão.
O transporte dos mortos era realizado em esquifes (tumbas) ou caixões. Estes eram, em sua maioria, de propriedade das irmandades e de uso coletivo dos irmãos. Após o transporte do corpo, eram lavados e guardados para posterior utilização.
Os sepultamentos eram realizados no interior das igrejas. Quanto mais próximo do altar e das imagens de santos, maior o valor a ser pago. Em geral, os esqueletos eram removidos após alguns anos para ceder lugar a outros. Importantes benfeitores da igreja adquiriam direito à sepultura perpétua através de vultosas doações. O adro da igreja era área desprestigiada, sendo reservada para os pobres e os escravos.
As missas de defuntos tinham o poder de abreviar o tempo passado no purgatório, trazendo grandes benefícios para a alma. Em Pernambuco, no século 18, um rico comerciante português tornou sua alma herdeira de todos seus bens; sua fortuna foi convertida em cento e vinte mil missas em intenção de sua alma.
Nem todas as pessoas podiam se beneficiar dos rituais funerários. Judeus, hereges, apóstatas, duelistas e seus padrinhos, usurários, ladrões e violadores dos bens da Igreja, suicidas e excomungados não podiam ser inumados em solo sagrado, sendo proibida a celebração de missas por sua morte.
As pessoas muito pobres e os escravos, quando não contavam com a caridade das irmandades leigas, tinham seus corpos abandonados nos matagais e nos rios. Com freqüência os despojos dos condenados eram expostos, sendo depois resgatados pela Santa Casa na procissão dos ossos.
A partir do século 19, com a instituição dos cemitérios seculares e com o desenvolvimento de uma política de saúde pública, os rituais funerários se modificam adquirindo suas atuais feições.
* Viviane Galvão é historiadora e pesquisadora do Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

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